Olhei aquela cena cotidiana e por alguns momentos meus olhos pareciam fixos naquilo que muitos desprezavam. Ao meu redor, as pessoas subestimavam com inquietude a minha fixação. E deviam se perguntar o que era mesmo de tão interessante que eu via ali.
De longe, eu acompanhava cada mínimo movimento da atriz do meu palco e sorria como criança quando vê na sua frente o personagem favorito. No mundo real, era apenas a visão de uma lavadeira em meio as suas atividades repetitivas. Pra ela, aquilo também já era rotina sem mistérios e por isso mesmo seus movimentos saíam quase que impulsivamente. No meu mundo, aquela cena despertava uma coreografia clássica, balé de movimentos artesanais piruetando sob meus olhos.
[quote_right]”Reúno minhas forças exaustivamente em busca da velha sensação macia de se estar leve. E sem a sapiência da lavadeira de ofício, sofro por me ver incapaz. “[/quote_right]Sua dança exigia força. Eu a via bater os lençóis no tanque e completar o movimento esfregando-os repetidas vezes contra pequenas ondulações. O passo seguinte exigia mais, ela torcia e retorcia cada tecido enquanto eu parecia sentir em mim mesma o seu esforço para não deixar sequer uma gota d’água ali. Naquele momento, duvidei de seus objetivos. Impossível, eu pensava comigo mesma, sabendo da injusta incapacidade dos já cansados braços da lavadeira tornarem o serviço completo.
Ela não parecia acreditar assim. Fez força daqui, força de lá, se contorceu até o último vestígio de suas próprias forças. Limpou o suor com o antebraço e tomou a atitude que mais me fascinou em meio a toda sua impecável atuação. Os estendeu a mercê do sol e dos ventos num varal próximo. A falta de força ou o papel inacabado não lhe roubaram o sorriso no rosto de satisfação.
Como se um instante comum fosse capaz de ligar uma linha invisível ao coração, eu enxerguei ali a mais simples e mais profunda lição do dia. Quantas vezes tenho sido lavadeira da minh’alma sem perceber quando me deparo com o encharcado que a vida fez. Esfrego minhas mágoas daqui, me debato contra meus defeitos acolá, me espremo em lágrimas querendo secar águas passadas. Reúno minhas forças exaustivamente em busca da velha sensação macia de se estar leve. E sem a sapiência da lavadeira de ofício, sofro por me ver incapaz.
Há momentos em que só o nosso esforço não basta. Almas molhadas precisam se estender ao sol. Quando todas as contorções só revelam a fraqueza de nossos braços é preciso que o astro maior nos faça queimar por dentro. Deixando a vida desencharcar lentamente a cada gota que evapora pra só então sermos de novo capaz de piruetar nas brisas. Como lençol limpo alçando vôos coloridos que exalam cheiro de amaciante.
Jully Anne é arquiteta por vocação, se expressa por desenhos no ofício e brinca com palavras nas horas vagas.
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