Como o moralismo de Bolsonaro conseguiu encantar cristãos brasileiros (e o que fazer sobre isso)

Desde 2018, é difícil pensar um dia que eu não tenha refletido sobre porque Bolsonaro é tão encantador para cristãos brasileiros, sejam católicos ou evangélicos. Não sou alguém especial para a política ou o pensamento evangélico do Brasil, mas a tristeza me corrói desde então e tenho gastado horas, dias, meses e anos tentando entender o que aconteceu.

Não é fácil. 

Como alguém que viveu intensamente uma vida evangélica por mais de 20 anos, é sobre esse grupo que posso falar com alguma propriedade, já que no fim do dia, estou tentando entender o meu próprio passado. Aos poucos, a gente descobre algo aqui, algo ali, lê, pensa, lê mais, vê depoimentos, confere o noticiário, observa o próprio presidente falando e muita coisa começa a ficar mais clara.

A mais importante dessas descobertas é fruto de uma longa reflexão pessoal e que entendo ser muito difícil de lidar: boa parte da responsabilidade sobre esse encanto com Jair Bolsonaro é da própria igreja e eu fiz parte disso.

O que quero dizer é que, a meu ver, as diferentes vertentes teológicas vigentes no mundo gastam 80% do seu tempo ensinando sobre a dimensão moral da vida humana, bem como o seu dilema existencial (o sentido da vida), mas apenas 20%, quando muito, tratam da dimensão de transformação material da própria existência proposta pelo cristianismo, ou seja, o servir. [A regra de Pareto aqui é uma estimativa pessoal para fins didáticos].

O que isso quer dizer na prática: quem cresce em igrejas de tradição reformada, pentecostais ou neopentecostais ou vive intensamente dentro delas por um tempo razoável, aprende que a moralidade da vida é mais importante que a transformação possível através dos atos práticos do cristianismo.

Explico: para a maioria dos cristãos evangélicos, mudar o caráter do indivíduo preso em vícios é mais importante do que tratar as consequências ou mesmo as razões do vício; fazer alguém entender que Cristo nos salva de nós mesmos é mais importante do que alimentar o pobre que está pedindo alimento na rua. Veja, é isso que é dito nos sermões? Não. Mas é isso que está posto com as diferentes agendas temáticas, programações, publicações literárias e diferentes aparatos culturais. É como no trabalho, quando seu chefe insiste que toda equipe precisa melhorar a qualidade dos projetos, mas todo santo dia ele aparece com um novo projeto urgente para ser resolvido. Prioridades, prioridades.

A forma mais fácil de entender isso é através de uma observação simples. Por mais que diversas igrejas tenham ações sociais organizadas e demonstrem preocupação com a população mais frágil, essas atividades nem de longe são as mais populares no cotidiano das comunidades. Salvas as raras exceções, a matemática do 80/20 se repete e é simples: 80% da membresia frequentará as programações de cultos, mas apenas 20% estarão presencialmente em atividades que exigem o contato com quem realmente precisa de ajuda urgente (na doação de cestas básicas, de agasalhos, na distribuição de sopa na noite, no abrigo a refugiados, em atendimentos de saúde, etc).

Ora, se a maior parte dessas pessoas consome majoritariamente sermões e conteúdos que falam somente à sua moralidade e senso de existência, por que seria surpreendente que parte tão expressiva do cristianismo brasileiro prefira uma candidatura moralista e não aquela é mais focada no social? É muito importante ressaltar aqui que não se trata de uma falta de olhar para o servir, mas sim de um absurdo excesso de preocupação com a moralidade. É possível encontrar, aos montes, comunidades que possuem um sem fim de ações sociais ativas, mas se deixaram levar pelo discurso moralista de Jair Bolsonaro. Dois pesos e duas medidas, mas o peso do moralismo é claramente maior.

Não se surpreenda com a dura realidade que vou dizer agora, mas também não tome como um reducionismo: existem teologias para justificar que o cristão não deve se preocupar com o meio ambiente, mas sim dominá-lo e consumi-lo; existem teologias para justificar que a caridade é parte essencial do cristianismo, mas que a condição de pobreza é diretamente conectada ao indivíduo e sua condição de pecador. Essa, aliás, é uma ponte importante sobre porque cristãos têm forte tendência de simpatia ao liberalismo: a crença nessa individualidade e a necessidade de transformação pessoal para que o todo mude é uma leitura comum das cartas de Paulo, endossada pela reforma protestante e muito comum na igreja de hoje.

Logo, não será surpreendente que existam cristãos, por exemplo, que valorizam causas anti-coletivistas: para esses, é errado existirem soluções coletivas para problemas sociais que possam ser apoiadas por cristãos. A transformação moral/existencial é sempre individual e a necessidade final de todo ser humano para viver melhor. Para essa visão, o estado não pode, por exemplo, impor que uma parcela da população (rica) financie um programa de renda para outra parte (pobre).

Na prática, é por isso que tantos cristãos tendem a não apoiar programas sociais de alto impacto visando sanar soluções urgentes: pastores comumente condenam soluções assim não porque acreditam que não é papel do Estado agir, mas simplesmente porque creem em teologias que são baseadas nesse ideal liberal de que o caráter humano é a condição final para os problemas do mundo – e não o capitalismo. 

No contexto brasileiro mais especificamente, é importante lembrar que há não muito tempo, éramos o país que ensinava que a condição moral do ser humano está ligada à sua civilidade e que era papel do Estado (através das escolas) mostrar o que é uma boa “Moral Cívica”. A disciplina, que existia nas escolas de todo país, tratava de aplicar essa noção de moralidade comportamental à vida de crianças e adolescentes sendo formados durante a ditadura militar. Essa parcela da população, que hoje tem entre 55 e 75 anos, não deixa de lançar mão daquilo que a influenciou fortemente à época, seja conscientemente ou não.

Claro, para completar, quem são os indivíduos que trazem uma ideologia que propõe um olhar mais coletivista e material? A oposição, claro.

Veja que esse é o momento em que dois mundos colidem. Bolsonaro é o candidato que se utiliza do Pânico Moral para causar impacto. E essa é a estratégia que aperta o nó dessa corda de sustentação do povo evangélico: a moralidade como força motriz de uma vida melhor. O oposto a isso é um vilão a ser combatido. Se a moralidade é o mais importante para esse público, então basta contar a eles uma mentira que traga um grande receio moral e que, a partir desse medo, se gere aversão e senso de urgência.

A partir do momento em que o candidato usa temas ultrassensíveis para atrair atenção (como o aborto ou a liberação das drogas), ele cria medo na população e, assim, um pânico moral que primeiro levanta as orelhas de quem? Da parcela cristã (nesse caso, católica ou evangélica) que se pauta diariamente por uma pesada visão moral da vida. Note como a adesão fica fácil.

Essa visão de mundo, portanto, é um terreno fértil para muitas outras investidas. Afirmar, por exemplo, que cuidar dos mais frágeis coletivamente é coisa de comunista (e “comunista é contra Deus”, voltando ao dilema existencial-moral) é algo bem tranquilo de se aceitar. Afinal, a transformação mais importante é individual e não coletiva. Ou é possível afirmar que ter o direito do porte de arma é um princípio importante, já que o esforço coletivo não é eficiente em resolver os problemas de segurança (com a força policial). Assim, “eu sou capaz de ao menos me defender do mal com as minhas próprias armas”. 

Se daqui partimos, para onde podemos ir?

Primeiro de tudo, é essencial entender que nas mais diversas variações da fé evangélica existirão, sim, extremismos diversos e que a maioria dessas pessoas (extremistas) não está interessada em ver possibilidades diferentes. É seguro dizer que vivem uma realidade paralela ao básico daquilo que Cristo pregou, algo sobre o qual não há dúvida, ainda que elas estejam constantemente afirmando que, na verdade, todo resto é que está errado. Esses extremismos, entretanto, não representam a totalidade dessa parcela da população.

Como, então, dialogar com a parte que não é extremista, não apoia o presidente incondicionalmente, mas hoje o enxerga como a melhor opção para continuar governando o país?

Primeiro, com o próprio dilema moral: o presidente fala o tempo todo em moralidade, mas não age como alguém que vive o que prega ou, muito menos, um mínimo de respeito à sua função. Diz que é a favor da família, mas casou-se três vezes (algo “abominável” para católicos e evangélicos conservadores) e desrespeita a individualidade feminina de sua filha mais nova, quando ironiza que, depois de três filhos homens, ela foi uma “fraquejada”. Bolsonaro acha que ser cobrado por insensibilidade sobre as mortes na pandemia é uma crítica vazia e, novamente, faz pouco caso das vidas perdidas: zomba de pessoas com falta de ar, diz que não é coveiro e, para piorar, incentiva aglomerações e posturas antivacina.

Bolsonaro também é um mau exemplo de trabalho e esforço em solucionar problemas: sua agenda pública no site do governo é constantemente vazia (há quem tenha registrado) e mesmo diante da maior crise sanitária desta geração que, por consequência, gerou uma das maiores crises financeiras dos últimos anos, ele sempre teve tempo de fazer lives semanais, andar de jet-ski, fazer churrascos, curtir a vida e viver como se estivesse em constante campanha. 

Não fosse o suficiente, ainda demonstrou durante a pandemia total falta de atenção com os laboratórios potenciais de produção da vacina. Ele nega e simplesmente afirma que comprou vacinas a tempo, mas provas não faltam de que suas falas são da boca para fora ou mesmo mentirosas, já que até mesmo um dos laboratórios mostra que o governo não os respondeu em mais de uma oportunidade. 

Nada disso deveria importar, entretanto: o presidente é a figura que será lembrada como aquele que diminuiu a gravidade da situação em suas falas públicas, demonstrando desprezo pela ciência – logo ela que, no fim do dia, foi quem nos salvou de um mal pior. 

Em segundo lugar, é preciso entender que parte desse problema é sem solução se não houver uma urgente mudança de paradigma no que se ensina nas igrejas. Sem a percepção da materialidade do Reino na vida contemporânea, jamais, repito, jamais se conseguirá impressionar qualquer crente que seja com as atrocidades que saiam da boca de qualquer “bolsonaro” por aí. A falha em perceber a gravidade das falas e atitudes de Jair é responsabilidade da própria igreja, por mais que ela esteja sendo influenciada pelos meios mais covardes usados pela ultradireita, como táticas de desinformação e pânico através das redes digitais.

O Reino que Cristo se importou em explicar não é apenas de transformação existencial (propósito), moral (caráter), mas também material (serviço). Essa dimensão material do seu Reino nos impede de fazer com que o nosso serviço esteja sujeito ao caráter de alguém.

Cristo não condicionou multiplicar peixes se-apenas-se houvesse conversão.

Cristo não condicionou transformar água em vinho em uma festa se-apenas-se todos parassem para fazer uma oração.

Cristo não curou cegos e paraplégicos se-apenas-se eles ouvissem primeiro um sermão de três pontos com hermenêutica ímpar.

Cristo, inclusive, resolvendo nossos dilemas existenciais, nem mesmo deixou sua morte à mercê das nossas decisões. Morreu e ressuscitou, diz o texto bíblico, para nos salvar por sua graça e imerecido favor.

Assim como Cristo, quem se debruça em cuidar de quem mais precisa, sempre estará disposto a salvar até os mais marginalizados, como o ladrão ao seu lado na crucificação. Quem vive apenas de olhar a moral, estará sempre com pedras nos bolsos, prontos para encontrar a próxima mulher adúltera a ser linchada.

Assim, é absolutamente incoerente que aqueles que seguem a Cristo se deixem levar por um candidato cujo projeto político se estabelece em um suposto pânico moral no país quando isso, além de não ser real, não representa aquilo que Jesus de fato colocaria para pesar mais em sua balança. É nesse excesso de moralidade que o cristão evangélico abriu espaço para que entrasse na igreja um projeto de país que parece saudável moralmente em um olhar apressado, mas absoluta vil na respiração seguinte.

Em total desequilíbrio, votar em Bolsonaro para evitar uma “crise moral” no Brasil é como se dizer amigo de Cristo, mas virando a esquina, fazer exatamente o oposto de tudo que ele acabou de ensinar.