Com uma canção de Derek Webb e ataques de um crítico extremista, a cantora evangélica e drag queen Flamy Grant chegou ao topo do ranking do iTunes. Em artigo especial, Ricardo Oliveira rememora a carreira do cantor e traz entrevista exclusiva.
Fotos: Emily Tingley
Ouvi Derek Webb pela primeira vez em 2008, através do álbum The Ringing Bell, uma época em que eu ainda era um igrejeiro intenso, tocando meu violão em cultos de duas a três vezes por semana. “Isso é feito por um cristão?” era uma pergunta que certamente me passava pela cabeça. Seus discos soavam como Beatles ou Bob Dylan e Webb falava de relacionamentos, inquietações e reflexões sobre a vida — eventualmente sobre sua fé. Na prática, nenhum cristão que gostasse do som tocaria suas músicas na igreja ou em um momento de oração em grupo.
Webb vinha de uma banda conhecida por seu cancioneiro evangélico, a Caedmon’s Call. O grupo sempre teve um som moderno para a cena que participava, investindo no lirismo de seus compositores e no folk-rock feito para cantar junto que lhe era característico.
Sem receio de expor suas dúvidas, incertezas e comportamentos fora do padrão “eclesiástico”, não demorou para que o trabalho de Webb começasse a ser criticado. Vez ou outra, aparecia um palavrão em alguma canção ou até algo mais “blasfêmico” como associar a igreja cristã à imagem de uma prostituta vestida de noiva na canção “Wedding Dress”. Para quem não entortasse o nariz, Derek parecia um poeta com vocação de profeta: cutucando feridas, mostrando especialmente as suas, e deixando os críticos sem saber para onde olhar. Os mais apressados, claro, sempre olham primeiro para as pedras.
Se as críticas não demoraram, levou um tempo até chegar a verdade inconveniente: há alguns anos Derek Webb deixou claro que não se identificava mais como um cristão. “Faz 10 anos que pisei fora da igreja”, ele cantava na canção de abertura do álbum I Was Wrong, I’m Sorry & I Love You, de 2013. Mesmo com tais “anúncios”, Webb hoje trabalha em uma igreja. É músico contratado da GracePoint, uma comunidade autodeclarada progressiva em Nashville, Tenessee, terra do cantor e Estado berço de tantas outras bandas que podem orbitar o tema como Paramore, Colony House e até os filhos de missionários do Kings of Leon.
No fim do dia, Webb parecia se enquadrar perfeitamente naquilo que, nos Estados Unidos, começou a se chamar de exvangelical, um neologismo para pessoas que deixaram a prática religiosa de forma direta ou indireta: seja pelo simples não frequentar mais reuniões em igrejas ou de fato abandonar a fé. Um dos casos mais famosos entre artistas norte-americanos é o de David Bazan, cantor da banda Pedro The Lion. Considerado um dos maiores compositores estadunidenses pela revista Paste Magazine, Bazan rompeu mais que simples laços e declarou, publicamente, ter largado sua fé.
Corta para 2023 e Derek Webb lança o aguardado álbum The Jesus Hypothesis. Segundo o próprio artista, o seu “primeiro disco cristão dos últimos 10 anos”. Além da novidade paradoxal em sua história, a afirmação tem um sentido técnico específico: ao se publicar um disco nas plataformas digitais, escolhem-se categorias em que ele se enquadra, como as prateleiras das velhas lojas de discos. Marcar a categoria “cristão” no iTunes, por exemplo, significa estar nas mesmas buscas de uma Amy Grant, uma banda como Hillsong ou todo mundo que se enquadre no termo CCM – sigla para “contemporany christian music”.
O álbum em si é um acerto musical que Derek conseguiu trazer para seus fãs, com quem tem um relacionamento muito próximo. Através do financiamento no Patreon, pessoas de todo mundo podem acompanhar seus processos criativos, bastidores de gravações e encontros periódicos com ele. O que talvez tenha surpreendido a muitos é o refrão da faixa-título do álbum:
“Talvez a hipótese de Jesus valha a pena mais um teste.
Para encontrar um ritmo para todas as batidas no meu peito.
Oh, a hipótese de Jesus, como o melhor palpite de Tomé,
como Pascal apostando com todas as dúvidas na minha cabeça”.
Falar de dúvidas, entretanto, está longe de ser o mais provocativo do lirismo de Webb. Passando por reflexões ácidas sobre a teologia paulina em “Sympathy for Paul” ou criticando os aspectos comerciais de igrejas em “Gift Shop”, o álbum prepara o terreno para um tema muito mais sensível para a categoria onde ele resolveu se reinserir.
Em canções como “Boys Will Be Girls” ou “God in Drag” o disco é absolutamente direto sobre a ideia de aceitação e inclusão de pessoas LGBTQIAPN+ na pura e simples noção de cristianismo. A primeira desse par de faixas, Webb escreveu para um amigo(a) não identificado que se abriu sobre sua orientação sexual para ele. Nos versos iniciais ele canta:
“Deixe-me começar dizendo que eu te amo
Talvez mais agora do que antes
Eu conheço seu rosto, mas agora eu vejo mais de você
Tanta beleza simplesmente atrás da porta”
A canção não se limita ao dizer o que realmente pensa sobre a relação entre igrejas cristãs e pessoas que quebram a “normalidade” cis e heteronormativa do mundo. Repleta de beleza e cantada com serenidade, em meio a guitarras distorcidas e uma batida industrial, afirma:
“Porque, às vezes, garotos serão garotas
Às vezes, armaduras serão pérolas […]
Eu ouvi que Jesus amou e gastou sua vida com aqueles que
Foram abandonados por homens soberbos e terríveis
Então, se uma igreja não te celebrar e amar
Eles acreditam em mentiras que
Não podem salvar a você ou a eles mesmos
Porque você é tão bonita(o) com o nome que for”
Se já não estava claro o suficiente o posicionamento de Webb, o cantor lançou um clipe da canção onde, ao longo de quase toda sua duração, mostra um passo a passo em que ele é maquiado como uma drag queen. Ao final, aparece na igreja onde estava se maquiando cantando com Flamy Grant, cantora drag e cristã que participou dos vocais da gravação. Citar Amy Grant mais cedo neste mesmo texto não foi por acaso.
Semanas depois do lançamento, o vídeo com Grant começou a circular fora da esfera progressista e inclusiva do cantor e seus fãs. Não demorou para que extremistas começassem a criticá-lo mais diretamente, o que o fez responder com algum sarcasmo, sempre repostando seus críticos e convidando os seguidores a assistir ou ler os conteúdos publicados.
Foi o caso de Sean Feucht, cantor cristão e apoiador declarado do ex-presidente Donald Trump e do movimento MAGA. Em um vídeo, Feucht condenou a canção e a parceria de Derek Webb com a cantora Flamy Grant, associando o conteúdo ao “fim dos tempos”. O resultado? O disco de Flamy foi para o topo das paradas do iTunes na categoria de música cristã. Mais que isso, a história foi parar em noticiários como a Newsweek, o portal Today.com e canais especializados como a Rolling Stone e a Paste Magazine.
Com “Good Day”, que tem participação do próprio Derek Webb, Flamy Grant deixou para trás nomes famosos como Chris Tomlin, Elevation Worship e Hillsong United. A canção, que Flamy interpreta em cultos e shows em comunidades inclusivas, diz em seu refrão:
“Um bom dia para voltar para casa
Você me mandou embora,
Mas eu nunca estive sozinha
Você teve medo de que não era o suficiente
Mas você não consegue ficar sem amor
Então eu fiquei e sentei na fila da frente
É um bom dia para sair das sombras
Deus me fez bom(a) em cada parte
Então ergo minha voz para celebrar o ótimo dia
É um bom dia, nada vai me tirar da luz
Eu não vou me esconder
Eu tenho um coração no lugar certo
Coberto pela boa graça”
A canção de country rock, que poderia facilmente ser interpretada por bandas cristãs famosas como Third Day, talvez fosse vista como um clichê de composição não fosse o seu contexto. Cantada por um homem gay, que foi ministro de louvor em igrejas por mais de vinte anos antes de começar a fazer drag, falar sobre estar na fila da frente e fora das sombras é bastante autoexplicativo.
“Good Day” passou mais de uma semana em primeiro lugar no ranking de músicas cristãs mais ouvidas do iTunes, algo grandioso para uma artista com não mais do que 10 mil ouvintes mensais no Spotify. O boom da canção foi parte de um movimento intencional de resposta de Flamy com seus mais de 80 mil seguidores no TikTok. Seu amigo Derek, ressoando em posicionamentos como de Hayley Williams (Paramore) e Sufjan Stevens (que também tiveram experiências evangélicas antes de ascenderem em suas carreiras musicais), segue levantando bandeiras que a maioria dos cristãos conservadores insiste em combater. A resposta às críticas, parece bem sintetizada na frase do pastor progressista Stan Mitchell, que abre o clipe da parceria entre Webb e Grant: “Se você afirma ser aliado de alguém, mas não está levando as pedradas que jogam nele, você provavelmente não está perto o suficiente”.
“Tem algo de único quando a mesma instituição que cura é a que machucou. É algo que amo e me faz querer participar”
Em entrevista exclusiva, o cantor americano Derek Webb fala sobre seu novo álbum, polêmicas com extremistas e sua relação com a igreja cristã.
Ricardo: Falando do seu olhar sobre sua carreira como um todo, The Jesus Hypothesis soa bastante como seus primeiros discos, mas com um grande salto nos aspectos de produção do álbum. Como você compara o seu trabalho daquela época com o este novo momento?
Derek: Honestamente, eu senti cada álbum como uma carreira completamente nova para mim. Quando finalizei esse, tudo parece acabado até eu ter a faísca do próximo. Acho que nunca escrevi uma canção que eu não tenha gravado, então sempre uso cada pedaço do que componho. Dito isso, The Jesus Hypothesis definitivamente é algo como uma quinta-essência para mim, um agrupamento das minhas mais variadas fontes, trazidas para atestar alguns assuntos extremamente misteriosos, pessoais e relevantes para mim. Você sempre espera que seu trabalho mais recente seja o seu melhor trabalho e eu me sinto dessa forma sobre o novo disco.
Ricardo: Em seus perfis de mídias sociais, você tem mostrando e até agradecido a seus críticos. Recentemente, você e Flamy Grant ganharam muita atenção devido a um cantor cristão criticando sua música e vídeo “Boys Will Be Girls”. Depois disso, uma canção do último álbum de Grant esteve em primeiro lugar no ranking cristão do iTunes. Como você vê os próximos anos para artistas e “ex-evangélicos” tentando viver através desses tempos agressivos? O melhor caminho é apenas continuar criando sua arte?
Derek: Bom, é o que se diz, que “não existe notícia ruim” e isso pode realmente ser verdade, se você souber o que você está fazendo. Para mim, eu simplesmente trabalho com o que acho que seja importante, me posiciono com o que sinto que precisa de posicionamento, primariamente para prover uma trilha sonora para as pessoas que parecem se importar e ressoar. Se e quando acontece uma retaliação, eu estou sempre pronto para lutar um pouco de judô e usar isso para conseguir vantagem na visibilidade. Você não pode ter pele fina neste tipo de trabalho e artistas como Flamy e eu têm muita prática nisso.
Ricardo: Sua música, desde o primeiro álbum, parece interessada em falar sobre os problemas da nossa realidade, especialmente os problemas que muitos vivem em igrejas cristãs. Hoje em dia, apesar do fato de já ter falado publicamente sobre como não se encaixa no modo tradicional de “viver igreja”, você ainda trabalha com música em uma. Como tem sido a experiência na GracePointe até agora, considerando seu momento na vida?
Derek: Sim, apesar de eu não me identificar como cristão evangélico neste momento da minha vida, eu me importo profundamente com este ambiente. A conexão que tenho com a igreja GracePointe aqui em Nashville é muito significativa para mim. Eu simplesmente amo essas pessoas, o jeito radical como eles acolhem e o bom problema em que eles estão se metendo constantemente. Acho incrivelmente poderoso para uma comunidade progressista, como a GracePointe, continuar operando debaixo de uma bandeira de “cristã”, enquanto trabalha incansavelmente em ajudar a desatar todos os nós que o evangelicalismo amarrou na vida e na história das pessoas. Tem algo de único quando a mesma instituição que cura é a que machucou. Amo isso e me faz querer fazer parte. Jesus como pessoa ainda ressoa profundamente em mim, como uma força cultural e desafiadora do império. Pela minha amizade com Josh Scott (pastor da GracePointe) e de outros na comunidade, eu continuo aprendendo tanto sobre viver o caminho de Jesus. No fim do dia, o modo como alguém trata os outros, especialmente aqueles que consideram “inimigos”, revela muito sobre a qualidade de suas crenças. Se vejo alguém intimidando ou tratando os outros de um jeito fundamentalmente ríspido, desrespeitoso ou crítico em geral, eu consigo aprender tudo que preciso sobre o que essa pessoa acredita e eu não estou interessado nisso. Entretanto, quando você vê os frutos do Espírito em alguém, com bondade, paciência, gentileza, etc, é cativante. No fim do dia, é o fruto da árvore que a revela. É o que você não consegue fingir ou esconder. Se o que você acredita faz de você fundamentalmente mais bondoso, respeitoso e compassivo com os outros, eu sou todo ouvidos.
* Entrevista concedida por e-mail através assessoria de imprensa de Derek Webb em agosto de 2023.