Pedro estranhou quando chegou ao escritório e viu o vulto pela janela de vidro. Parecia animado demais para uma manhã de segunda. Era o quarto andar do prédio onde ficava a empresa de contabilidade que o havia contratado há 3 meses. Fazia de tudo por lá – incluindo prestar atenção ao pôr-do-sol pela única janela, todos os dias. O viaduto que atrapalhava a vista fazia com que seu poente diário terminasse às 16h30, ainda que o expediente se estendesse por mais duas horas.
É um urubu… – disse pra si mesmo quando chegou à janela.
O abutre parecia ter notado a presença de Pedro e o observava cuidadosamente pelo vidro fumê – ainda que não houvesse possibilidade de realmente vê-lo. Assim de perto, pela primeira vez, Pedro reparou que um urubu até lembra uma galinha preta em versão maior e mais sinistra. Testa enrugada, cabeça formando junto com o bico uma ponta de flecha. Penas negras e rabo grisalho.
O rapaz percebeu que já observava o animal há mais tempo do que deveria. Bateu duas vezes no vidro com a dobra do dedo do meio, tentando fazer o urubu partir. Nada mudou. O abutre virou a cara para o lado do sol, deu dois passinhos para direita e resolveu repousar ali mesmo, na janela do escritório. Pedro riu consigo, ignorou a situação e foi procurar o que fazer no arrastado começo de semana.
Era cedo e estava sozinho na sala. O chefe sempre chegava depois das dez e ainda faltava ao menos meia-hora pra todo mundo aparecer. Chegar mais cedo na segunda era tão raro quanto um urubu pousar na janela.
O sono inspirou a vontade de café, ainda que tivesse pouca experiência com a arte das porções certas para a cafeteira. No caminho da sua mesa até a mini-copa improvisada na mesinha ao lado do bebedouro, passou pela janela e reparou que o abutre permanecia lá. O seu total despreparo com a feitura rendeu pó espalhado pela mesa, mas algum tempo depois o cheiro tomou a sala. Parecia também ter saído dela: quando Pedro reparou, o urubu estava de pé outra vez mais próximo à janela.
“O abutre virou a cara para o lado do sol, deu dois passinhos para direita e resolveu repousar ali mesmo, na janela do escritório”
Disse o que disse como que tentando negar a loucura do pensamento que o ocorreu. O abutre parecia ansioso por um gole do energético. Pedro imaginou o bicho cansado depois de uma noite de caça sem sucesso. Os ratos da região devem ter gastado horas atormentando donas de casa e nada de barriga cheia para ele. Desemparado, conseguira no máximo uma catita morta num canteiro da BR – já esmagada pelo fluxo dos carros. Tudo coisa da cabeça de Pedro.
Preparou outra dose de café numa cumbuca de plástico que encontrou no lixo. Não sabia o quanto de açúcar colocar e resolveu colocar nenhum. Urubu deve ser casca grossa e tomar o troço amargo.
Pedro foi até a janela tentando não derramar o café, já que levava consigo também a sua caneca cheia. A jornada de 2 metros o deixava sem jeito. Não é todo dia, não é todo dia. Abriu o vidro com receio e a chegada por ali revelou interesse ainda maior do urubu. Tinha jeito de quem gostava de café. Pescoço esticado, cabeça apontando para a mão direita de Pedro.
Quem visse da rua acharia curioso. Um urubu repousado no parapeito da janela do prédio amarelo, bicando uma cumbuca junto a um homem tomando café na caneca. Pareceriam dois amigos, compartilhando a vista. Não era o por-do-sol, mas Pedro agora tinha companhia e a essa altura já não pensava sobre o estranho da situação.
Recostado na janela, com as mãos pra fora e sentindo a brisa que parecia ter feito a curva do nascente ao poente, Pedro descobriu-se emocionado. Se esticou para frente, observou a altura e pensou que precisava de mais urubus. Virou o olhar na direção do seu companheiro e foi apenas o tempo de vê-lo já partindo.
Parou de novo pra imaginar sobre o rumo do bicho – se voltaria, se gostou do ponto do café. Ouviu a porta abrir, tocou duas vezes com a dobra do dedo no vidro e virou sorrindo para o chefe que também chegava mais cedo.
– Com ou sem leite, seu Rezende?