Cronostase

O plástico batia e rebatia nos filetes do pneu da bicicleta, o som era longe e por vezes se misturava com o ritmo do aspersor no jardim à sua esquerda. O céu estava majestoso, não aquele céu limpo e de um azul que castiga e enfada, tinha a dose certa de nuvens para encher os olhos e alimentar a imaginação.

Ao menos era assim que o enxergava, coisa que não conseguia lembrar a última vez que fizera. Também lhe chamou a atenção a pequena praça à direita, virou os olhos e a analisou por inteiro. Nenhum banco. Que tipo de praça não possui sequer um banco? – questionou-se. Duas vielas de barro, delineadas por pequenos tijolos, formavam um “X” que cortava a praça em suas diagonais e serviam de morada para o cajueiro que chorava as folhas do fim do verão.

O sol ainda ardia sem pressa, era cedo, se esgueirava com cuidado por entre as folhagens formando canudos de luz e revelando a dança aleatória da poeira. Percorreu com o olhos o meio-fio e descobriu, no canto da praça, uma placa: “Em prol da acessibilidade”, posicionada sob a tinta fresca que indicava uma rampa recém construída. E a praça não tem um banco! – riu.

Percebeu que um cheiro de pão tomara conta do ar, fechou os olhos e passou a concentrar-se nele, não sabia que havia uma padaria ali por perto; nunca fora muito afeito a caminhar pelas redondezas. Ou talvez não fosse uma padaria – pensou, mas alguém vindo de longe, garantindo um café-da-manhã fresquinho.

O barulho de salto alto parecia confirmar sua segunda tese, novamente riu e se manteve de olhos fechados, imaginando uma senhora elegante, de passo apressado, com o saco de pães frescos dentro uma cesta de vime trançado – digna de alguém de sua estirpe. A brincadeira durou pouco, logo notou que o barulho ainda era do plástico no pneu da bicicleta.

“Téc! Téc! Téctéc! Tétéc! Tététéc! Téctéctéctéééctéééc!” – o barulho se intensificou rapidamente. Ainda de olhos cerrados, dessa vez já conseguia distinguir o barulho frenético do plástico nos filetes, o leve chiado que a borracha fazia ao se encontrar com o asfalto e o pequeno rangido da cela; não conseguia, todavia, distinguir um som arrastado que surgia ao fundo.

Silêncio. Abriu novamente os olhos: o jardim, a praça e até a bicicleta pareciam combinar a greve de som. Todos mantinham o seu ritmo, só que agora sem emitir um “piu”. Apenas o cheiro de pão continuava, transformando a cena toda na mais deliciosa fotografia. Cerrou as pálpebras mais uma vez.

Aproveitou aquele estranha e crescente dormência para viajar naquele cheiro de trigo tostado de volta à seus 10 anos. Mesa posta, toalha esticada e um sorriso que jamais veria novamente, todos passam depressa empurrados por uma sucessão de borrões, imagens disformes e embaçadas, como se capturadas com desleixo e desdém. Então já é hoje, o terno comprado na semana passada mais a maleta de um couro puído compõem aquela figura deitada e que contempla “Pães Dom Inácio” crescer em sua direção.

Novamente o som do plástico no pneu da bicicleta, o céu azul na medida certa e a praça que não tem banco. Tudo igual menos o ângulo, que o fez lembrar do som arrastado ao fundo e se agora conseguiria descobrir o que era.

Vasculhou o cenário a partir desse novo ponto de vista e viu uma luz vermelha desfocada que acendia e apagava sem ritmo; pouco antes da praça, um automóvel qualquer baforava um fumo branco; caídos na calçada, pãezinhos eram ignorados por seu jovem entregador de expressão aflita; no centro, um sujeito encerrava seus primeiros 5 minutos de vida vivida.

“O som vem dali.” – disse alguém que chegara junto, também olhando de cima, apontando para a luz de emergência que lentamente entrava no foco da cena. Ele agradeceu e, aliviado, virou-se para ter eternamente o sorriso que antes jamais veria novamente.


Cronostase.
Foto: Shadow of the past.