Terça – 2 de dezembro – 20h17 – São Paulo – SP
Enquanto todos ocupavam gradualmente os lugares do espaço cênico situado entre a Vila Madalena e Pinheiros, em São Paulo, André e Thiago Arrais estavam sentados em suas cadeiras no palco. Dali observavam o fluxo, percebendo que a lotação era maior do que a disponibilidade de assentos.
Como solicitado pela organização, muitos começam a sentar na borda do tablado onde a dupla Os Arrais iria tocar. O evento era às 20h, reservado a 100 pessoas e desde as 17h tinha gente fazendo fila. André e Thiago levantaram das cadeiras onde estavam e as levaram até um grupo de espectadoras sentadas no chão. Deram o lugar a elas, voltaram, sentaram no chão e esperaram.
A comunidade Glocal, apresentada naquela noite pelo ator, pastor e vlogger Marcos Botelho, recebia a dupla Os Arrais em aquecimento ao Rock no Vale, que aconteceria no fim daquela mesma semana. O festival é produzido por Marcos Botelho (Jovens da Verdade/Glocal) e Rafael Diedrich (Love7).
– Eles estão aqui e não cobraram nada, então gente pediu apenas um quilo de alimento como entrada, para uma instituição que apoiamos – explicou Botelho a todos antes de começar o show.
Como de praxe, chega a vez d’Os Arrais e o que vemos no palco é somente um cajon, um banquinho, dois violões e alguns poucos instrumentos percursivos. André e Thiago, com o bom humor que lhes é característico, iniciam com uma canção nova, ainda não gravada.
“E a fronteira da poesia encontrar
Onde nasce cada rima
Tendo como cama a grama e teto o céu
Esquecer minhas feridas”
A canção Montréal, em seu minimalismo folk, em todo seu intimismo, deixou bem claro aos novatos à dupla ou a quem não estivesse lembrado: é intrínseco aos Arrais essa melancolia esperançosa, a poesia cantada sobre suas dores, sem perder de vista o porto.
– Talvez mais importante do que vocês virem aqui nos ouvir seja a gente estar aqui tocando pra vocês. Estamos muito cansados e esse é nosso descanso. Vamos descansar juntos? – dizia Thiago a todos, fazendo referência à longa viagem dos Estados Unidos ao Brasil.
A dupla mora na América do Norte há vários anos, seguindo em pós-graduações de teologia na fria região dos lagos de Michigan. Chega ao Brasil, àquela pequena plateia, com mais de 200 mil fãs no Facebook e um contrato de distribuição com a Sony Music Gospel.
A simplicidade contradiz a expectativa de que encontraríamos um “artista Sony” por ali. Era comovonte à plateia se deparar com a transparência de Tiago em contar no palco da Glocal que sua esposa havia perdido gêmeos alguns poucos meses atrás. Da situação de dor havia surgido a mais recente canção escrita por ele, contando também que há meses não compõe. “O Bilhete e o Trovão”:
“Quando a porta recusa-se a abrir e eu rogo em vão
Quando vejo de longe o trem partir
Um bilhete em minhas mãos
Seja minha canção:
Estrofe, ponte e refrão”
Sexta – 5 de dezembro – 22h20 – Arujá – SP
Arujá é ao lado de São Paulo, mas numa sexta-feira é quase como ir ao Rio de Janeiro. Depois de quatro horas de trânsito o *catavento chegava ao festival Rock No Vale, onde naquela noite fria (16º graus celsius) tocariam Os Arrais, Crombie e O Teatro Mágico.
Abrindo a noite, a dupla André e Tiago Arrais subiu acompanhada de banda, pela primeira vez em um show. Bateria, contra-baixo, teclado, cordas e o backing vocal de Laura Souguellis formaram uma sonoridade diferente daquela que os que acompanham a banda pela Internet ou em outras apresentações estão acostumados.
– O amigo Marcos Almeida me disse que nós somos a voz mais silenciosa do rock – respondeu Tiago, quando perguntado sobre eles terem um lado rock’n’roll escondido em meio ao folk.
Mas o folk não sumiu do palco. Ele é presente e forte, em hits como “17 de janeiro” e “Esperança”. Todas acabam por receber um toque piano rock (ou “soft rock”, como definiu Leonardo Gonçalves em relato de Tiago) que em termos de festival pode ser mais empolgante para a plateia. Mesmo sem guitarras distorcidas, o final de “A Voz” termina instigado.
Os Arrais não estão perdidos no modelo banda ao invés do tradicional duo. Tanto que fizeram show nos mesmos moldes na segunda-feira seguinte, no festival Love7, cantando o hit “Não Fale” ao lado de Daniela Araújo.
Ouça trecho da entrevista com Os Arrais falando sobre referências musicais e literárias, contando como conheceram Steve Mason, guitarrista do Jars of Clay, e o convidaram para gravar guitarras e violões no disco Mais.
Histórias
Com o disco “Mais” e as canções já anunciadas e apresentadas como do próximo álbum, não é difícil notar o gosto da dupla pela composição de narrativas cantadas. Mais do que um eu-lírico interessado em alcançar bençãos ou exaltar o divino no be-a-bá gospel, as letras dos Arrais contam suas histórias, revelam jornadas. Os caminhos dolorosos de ambos, as descobertas, tristezas e esperanças aparecem em cada trecho do álbum e do show.
– A Bíblia tem essa função. A gente lê histórias de outros personagens e a gente se encontra no sofrimento deles, nas dores e nas esperanças deles. O próximo CD não vai ter nada de história nossas, apenas histórias de personagens pelo ângulo dos patriarcas e a gente acaba se encontrando nesses personagens. Isso é uma maneira da gente explorar quartos dentro da nossa alma que a gente não tinha explorado ainda, porque não tínhamos encontrado alguém vivendo aquilo daquele jeito, fazendo a gente pensar “poxa, eu não estou sozinho” – explica Tiago Arrais.
As novas canções, como “Montreal”, “O Bilhete e o Trovão” (que contaram jornadas pessoais) ou mais antigas mas do próximo disco, como “Akedah”, são sempre intercaladas com extensas falas dos dois, contando gênesis das canções, fazendo rir. O lado educador dos dois brota com facilidade e isso explica uma mudança que está para ocorrer nessa jornada.
“Isso é uma maneira da gente explorar quartos dentro da nossa alma que a gente não tinha explorado ainda, porque não tínhamos encontrado alguém vivendo aquilo daquele jeito, fazendo a gente pensar ‘poxa, eu não estou sozinho'”
Num desses momentos, como se não fosse muita coisa, Tiago revelou que a dupla está “se separando”. André, que é pastor, foi convidado a cuidar de uma comunidade nos Estados Unidos, após o término do seu mestrado.
– Tudo que a gente faz é com a convicção que estamos fazendo a vontade de Deus. Se é pra gente começar a ter mais apresentações e seguir em frente, as portas vão se abrir – diz André, com fé otimista sobre a caminhada musical da dupla de professores.
Talvez essa clara despretensão músical, onde ela não é exatamente o foco, seja um dos segredos da dupla. Longe de soar como uma falsa modéstia, parece que o lado artista anda saudavelmente bem ao lado do lado professor, citado por Tiago em entrevista.
– O nosso ministério é centrado na palavra. Se nos chamarem pra fazer música nós faremos, se for pra ensinar, vamos ensinar – reafirma Tiago, que anuncia a gravação do próximo disco para janeiro e também o lançamento de um curta-metragem.
Entre o folk, o soft rock, a poesia profunda de suas letras e o minimalismo acústico do seu som, André e Tiago desbravam com destreza o sinuoso território musical das gravadoras distribuindo artistas cristãos.
A resposta à pergunta que fiz a Tiago um pouco depois da conversa principal parece ser a resposta perfeita para entender um fator importante. Lançados no Brasil pela Sony e seu selo gospel (de onde também saem nomes como Leonardo Gonçalves, Tanlan, Mariana Valadão, Resgate, Jamily, Catedral e longa variedade eclética), Os Arrais chegam às prateleiras de lojas, de iTunes e tudo graças a este processo de distribuição. A simplicidade, entretanto, parece nada ter a ver com tudo isso.
– Tiago, quantos exemplares foram vendidos do álbum “Mais”?
– Não faço ideia, cara.
Ricardo Oliveira é jornalista, mestre em comunicação pela UFPB, cinéfilo, blogueiro no Diversitá e megalomaníaco por produção de conteúdo. Tenta filmar seu primeiro curta de ficção e nas “horas vagas” edita o *catavento.