O baterista fecha os olhos e toca jazz mesmo sem saber se está tocando jazz ou punk. O jogador faz a mini reza antes de cobrar o pênalti, sem saber se isso vai render um contrato bilionário, se isso é apenas vaidade ou se vai dar trave. O feijão é bom, mas tão bom, que a melhor oração em agradecimento é o clássico “hmmmm!!” – já dizia minha mãe!
Outros exemplos seguem:
Crianças e cachorros parecem gostar de pessoas sinceras. Pessoas sinceras parecem fazer coisas lindas. Coisas lindas nos deixam plenos e mesmo quando não percebemos, tem uma certa divindade aí.
Por que estou escrevendo tudo isso? Oras, porque Deus é involuntário, natural, instintivo. Antes de ser a regra, é o amor. Antes de ser a religião, é simplicidade. Antes de ser discurso, é sentimento. Aliás, corrigindo: a regra, a religião e o discurso, somos nós. Deus é tão improvável para nós que para entendê-lo, nós inventamos métodos. Tolinhos..!
Mas não quero falar sobre dogmas, aqui. Nem sobre liturgia. Esses temas, com o passar do tempo só me fizeram acreditar que existe mais, e que esse mais é puro mistério. Não vale julgamentos, vale só se entregar à essa grandeza incontrolável, e aceitar que quem é amado não precisa provar que é melhor ou especial, ou escolhido. Estou escrevendo isso pra falar sobre uma porção de Deus que vive dentro de todo ser humano, e que por vários momentos ao dia se manifesta sem percebermos. Essa é a prova de que por mais tecnológicos, ricos, lindos, populares, lascados ou corruptos que possamos ser, algo ainda vinga e dirige-se a Deus. Pode ser a coisa mais humana possível. Uma fragilidade, um pedido de ajuda interno e secreto quando você se sente sozinho. Uma boa ideia que você tem no meio de gente sonolenta no metrô. Não tente me convencer do contrário. Isso, pra mim, é Deus. E não estou sendo religiosa aqui. Só estou sendo extremamente humana. Religioso é quem pensa que Deus é um assunto que deve ser tratado em lugares específicos, por pessoas especialmente selecionadas. No!! Deus está chamando sua atenção a cada crise, cada gargalhada, cada cagada que você faz. E por que isso?
Pra você lembrar que apesar do que falam, a sua humanidade sabe o caminho e você corre o risco de ficar bem, mesmo no meio da bagunça. Apesar das distrações ao redor, nossos sentimentos tem onde desaguar. Quantas vezes você desabafa um palavrão, mas é em Deus que você pensa quando o lance aperta mesmo? É quase um reflexo. O Homem se desespera e recorre a algo maior. Sem escolas, sem curso, sem teoria. Ninguém ensina um rio a chegar no mar, por que você acha que com sua alma não seria igual?
“Quantas vezes você desabafa um palavrão, mas é em Deus que você pensa quando o lance aperta mesmo? É quase um reflexo”. Acredite que você não foi jogado no mundo e que suas questões não tem tanta importância assim. Esse exercício se chama fé e talvez a gente leve a vida inteira pra entender. Mesmo assim, arrisque-se na aventura de saber sobre o que se trata viver nesse mundo tendo a noção de que todos nós somos seres espirituais. Ninguém te conhece tanto quanto quem te criou. Você pode ter os melhores amigos da vida, mas ninguém sonda o seu interior, né irmão?
Gosto quando nossa humanidade limitada, incapaz, exausta e sincera nos leva até Deus. Me parece um caminho certo, possível e real, mesmo aos trancos a barrancos. Não é preciso ler livros, decorar mantras, nem ao menos concentrar-se. Deus está nas pessoas, é um movimento frequente, você não vai conseguir parar. Por mais nervoso que esteja, por mais inseguro ou só. A noção de que existem coisas em você que precisam de algo maior já é uma busca. E toda busca é fé.
Ontem caiu uma chuva absurda aqui no Rio. O taxista me disse hoje cedo: “quando chove assim é bom, dona! A gente é obrigado a acalmar os ânimos”. Eu concordei com a cabeça e pensei que sobre nós existe algo enorme, que não controlamos, que não conhecemos, mas que diariamente nos altera, nos transforma, nos afeta. Olhe ao redor. Todos estão sob influência divina. Jamais venceremos essa discussão, jamais teremos todo o domínio.
Então pouco importa se é jazz ou se é punk. O olho fechado do baterista nunca foi tão humano é tão espiritual ao mesmo tempo. Pouco importa quantos raciocínios bonitinhos existem para nos levar para perto de Deus. Não deixe de enxergar que ele se mostra puro e transparente em momentos onde ninguém pode interferir. Perceber esses momentos é tão bom quanto comer feijão com fome.
Luciana Elaiuy é paulista, mora no Rio, já publicou poema, teve banda, criou o umpontoum, o musiquice e está forçando um sorriso nessa foto.
“Hmmmmm!” é um texto original de Elaiuy para o *catavento. A ilustração acima é de Kiki Saraiva.