Bruno Torturra, uma das vozes do jornalismo alternativo que se ampliou a partir dos movimentos de junho de 2013 no Brasil, costuma dizer que a única forma de colocar mais de 1 milhão de pessoas em uma manifestação no país é se elas não tiverem uma pauta única. Assim como no movimento das Diretas Já, a amplitude de grupos divergentes na rua, em 2013, dependia da amplitude da insatisfação, transpondo os diferentes aspectos da mesma.
Em junho daquele ano histórico, especialmente em um momento específico pós-reações violentas da polícia aos primeiros protestos, havia gente de esquerda, centro esquerda, centro direita, direita. Gente com a camisa da seleção brasileira, gente com a camiseta do PCO. Tinha gente com faixas contra o PT, mas também “contra tudo que está aí”. Gente pedindo por mais democracia e gente ousando pedir, já naquela época, uma intervenção militar.
Inúmeras vezes, na cobertura midiática, havia um esforço constante em qualificar esses movimentos como “acima de qualquer bandeira” ou “sem liderança específica”, o que nem de longe representava toda a verdade, ainda que indicasse um real sintoma de descentralização da organização dos mesmos.
Foi dali que se fortaleceram organizações como o Movimento Passe Livre, que organizava várias da manifestações, mas também nasceram outras como resposta: o Movimento Brasil Livre (MBL) como resposta mais direta e equivalente “liberal” ou o Vem Pra Rua – que se consolidaram especialmente poucos anos depois, nos movimentos pró-impeachment da presidente Dilma Roussef.
Parece que foi ontem, mas já faz sete anos que tudo isso começou. Em um desenvolvimento gradual de manifestações, que viveram uma segunda onda entre 2015 e 2016, a pauta “antipolítica” ou “por uma nova política” só não foi mais popular que as noções de antipetismo. O que a gente demorou a entender é que uma parte considerável da razão – não só da existência mas da consolidação – da popularidade de Jair Bolsonaro se deve a esses temas.
Por mais que o atual presidente da república tenha estabelecido sua base de eleitores em torno de uma visão conservadora e autoritária, na eleição o jogo realmente virou quando ele conquistou parte suficiente de indecisos regando essa semente plantada em 2013: contra tudo que está aí. Claro que muita gente demorou a perceber o risco desse discurso – me incluo facilmente nesse delay.
Ainda que essa corrupção já estivesse sendo investigada e julgada em processos muito anteriores, ainda que tivesse “recebido” um impeachment como marco final, essa expectativa ainda precisava de um herói que viesse para, de uma vez por todas, afastar “a sujeira” do Brasil. E foi com a cartada final de Sérgio Moro como Ministro da Justiça que Jair Bolsonaro conquistou a eleição, garantindo o paladino do lavajatismo em seu governo.
A Operação Lava Jato, dividida entre ricas conquistas e vergonhosas manipulações, foi o elemento final que fez o Brasil eleger Bolsonaro. E por mais que seja comprovado por investigações jornalísticas que nela havia um claro interesse em influenciar nas eleições de 2018, a percepção midiática e pública é de que ela teve efeitos mais positivos do que questionáveis.
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O flashback acaba – corta para 2020. Estamos parados, sem ar, sem entender como tudo isso começou. Todo santo dia alguém fala de um “novo normal”, mas no país que é novo epicentro da pandemia de Coronavírus, com projeções claras de ultrapassar até os Estados Unidos, o que a gente mais vê é um novo anormal.
Porque não há nada de normal em um presidente seguir desprezando uma pandemia, deixando claro inclusive, que isso é ação política e não ignorância. Bolsonaro nunca escondeu seu interesse que uns 30 mil morressem, então nada mais oportuno que deixar morrer. Afinal, se o índice de leitos ocupados decorrentes de covid-19 em hospitais privados já diminui, porque se preocupar?
Sempre fomos o país cujo povo e a mídia tendem a ignorar as mortes diárias dos negros porque são apenas a “paisagem” nebulosa. As mortes de brancos, ricos ou de classe média, em seus ambientes “protegidos” isso, sim, sempre assusta e é manchete.
O projeto antipolítico venceu as eleições, mas fracassou como governo – aqui e nos Estados Unidos, é preciso dizer. Como diz o Dr. Cornel West sobre as manifestações antiracistas por lá, estamos testemunhando um experimento social que falhou. Conduzidos por um anticientista maquiavélico (nunca louco, é preciso sempre reforçar), somos apenas ratinhos repetindo “cloroquina”, ignorando a enorme cicatriz na testa indicando que alguma coisa aconteceu ali dentro daquele crânio.
Como canta Tim Bernardes desde 2017, tanto faz, tanto faz:
Como se não fosse o suficiente, mais ocupada em defender o presidente do que 50 mil famílias, parte considerável da “igreja” brasileira afunda na insensibilidade de retomar as atividades de culto, tratando como “novo normal” fazer isso usando máscaras, cadeiras distantes entre si e outras medidas higiênicas. Muito diferente daquela igreja que se organiza em pautas mais urgentes do que se expor aos riscos de uma doença terrível.
Somos o país que, com alto apoio popular, flexibiliza as medidas restritivas de circulação sem sequer ver a curva de casos diminuindo – pelo contrário, ela só cresce. O que há de normal nisso? Muito anormal, isso sim.
“Bem-vindos ao novo anormal” deveria ser o slide da sua apresentação, amigo cooldhunter.
Diante do autoritarismo em curso e da diluição da democracia brasileira, cada vez mais iliberal, costumamos lembrar que a ferida da ditadura militar de 1964 não fechou com a Constituição de 1988. Olhando para o passado recente, parece que estamos descobrindo que há uma outra ferida antiga para tratar, ela tem 7 anos, é antipolítica, insatisfeita contra tudo que está aí – menos com a sua política e a sua cosmovisão. Chamem a UTI – é urgente.