Consumir música boa nos anos 90 era difícil. Especialmente se você morava no interior do Espírito Santo. Ou era membro de uma igreja pentecostal tradicional. Mais ainda se possuía um 486 com 12 MB de memória RAM sem modem e não desfrutava das maravilhas do Napster e do pulso único. Sem acesso a boas publicações, minhas descobertas estavam restritas ao catálogo de lançamentos disponível para consulta na loja de discos da cidade — e não era raro comprar um álbum internacional pelo nome da banda sem saber se aquilo era reggae ou rock.
“Cresci ouvindo, repetidas vezes […] sobre os discos importados de AC/DC, Black Sabbath, Led Zeppelin, etc., que meu pai trocou por um Fusca usado”
Nascer em uma família de músicos foi parte de minha ventura rumo às riquezas da boa e genuína música brasileira, no entanto, nada me afortunou mais que ter um pai roqueiro. Cresci ouvindo repetidas vezes, nos mínimos detalhes, o relato do momento em que Freddie Mercury surpreendeu a plateia no Rock in Rio de 1985. Ou sobre os discos importados de AC/DC, Black Sabbath, Led Zeppelin, etc., que meu pai trocou por um Fusca usado. Sim, eram tantos e tão raros que valeram um automóvel usado logo depois do meu nascimento.
Parte deste acervo ficou guardado na casa de um tio após a conversão do meu pai ao Cristianismo e só fui descobri-los mais ou menos em 1998, aos 12 anos, por pura sorte. Eram dois álbuns que nunca apareceram em listas de melhores discos da história, mas começaram a pavimentar meu gosto pelo rock e minha experiência como ouvinte: Powerslave (1984), do Iron Maiden; e We’ll Bring The House Down (1981), do Slade. Lembro do encantamento com as capas cheias de detalhes, apreciadas como um turista que observa a Monalisa.
E aqui começa minha experiência como traficante de música boa:
- Sem poder transportar os discos livremente, primeiro tratei de escondê-los no meu próprio quarto numa operação digna de James Bond;
- Ouvi-los, porém, seria ainda mais desafiador. Sem um toca-discos em casa, precisei recorrer à casa de dois primos próximos que tinham um aparelho no quarto;
- Como em um bom filme de espionagem, planejei carregar comigo os discos durante a noite e finalmente consegui autorização para dormir na casa dos primos;
- Para não chamar a atenção, camuflei os álbuns dentro de uma grande almofada de espuma com estampas de araras. Um Pablo Escobar do rock.
Para quem ouvia apenas Catedral, Resgate, Oficina G3, Katsbarnéa e Fruto Sagrado, acompanhar a bateria de abertura de “We’ll Bring The House Down” foi libertador. Toda a efervescência do rock ali, diante de três pré-adolescentes ansiosos por músicas novas, algo que só voltei a sentir quando finalmente tive acesso à banda larga e pude baixar meus próprios discos e me surpreender com artistas que desconhecia.
O objetivo deste texto não é soar saudosista. Ainda bem que temos hoje a internet como aliada para ouvir, quase em tempo real, o que é lançado em qualquer lugar do mundo. Mas esta experiência me diz muito sobre o valor que damos à ferramenta que temos em mãos e aos discos que encontramos pela web. Quem reclama da qualidade das músicas atuais, definitivamente, não sabe usar o Google, não presta a devida atenção no que ouve ou está restrito ao cardápio dos programas de TV — ou não lê o catavento* 😉 .
Temos um universo de possibilidades diante de nós. Quantos “Os Arrais” e seu folk chorado ganhariam espaço em grandes gravadoras nos anos 90? Quantos “Interlúdio” e “Versos Que Compomos na Estrada” ainda descobriremos por meio da internet somente neste ano? Ainda que não precisemos traficar música boa, como fiz na infância, seria salutar se, ao menos, pudéssemos dar mais valor ao que encontramos em nossas andanças virtuais. Ouça com carinho o que lhe for oferecido. E se for bom, traga para mim numa almofada de espuma.