À certa altura de Os Oito Odiados alguém que está prestes a começar uma encenação diz “não se esqueçam: vai ser preciso ter muita paciência”. O que pode passar como uma mera linha de diálogo entre personagens da trama, acaba por resumir a resposta de Quentin Tarantino à maior parte das críticas a alguns dos seus trabalhos (especialmente os mais longos, como este que tem 3h de duração). Foi assim com Jackie Brown, À Prova de Morte, Kill Bill Vol. 2, Django Livre e agora com seu oitavo filme.
– Dava pra cortar aquela barriga ali no 2º ato – dizem os antagonistas dessas narrativas.
– Por que tirar o melhor? – alguém poderia perguntar.
– Você está insinuando que eu estou mentindo? – pergunta o antagonista.
– Não, eu ainda não comecei a faze-lo.
Os Oito Odiados é o ápice da jornada tarantinesca em refletir sobre como se conta a história e se narra estórias. O processo começou na deturpação do registro histórico em Bastardos Inglórios. Passou pelo exercício de exploitation sobre a escravidão em Django Livre e chega à maior liberdade dessa trilogia histórica aqui, mantendo a vingança como vetor durante o período logo após a Guerra Civil americana.
Maior liberdade porque em Os Oito Odiados se foge até mesmo da necessidade de colocar seus personagens como parte de um contexto histórico e se escolhe usar tal contexto apenas como pano de fundo para as decisões deles. É uma justificativa para o desenrolar do jogo narrativo de Tarantino – passando pelo que já conhecemos (divisão de capítulos, flashbacks) até chegarmos em novas camadas do seus próprios métodos.
Estas novas camadas utilizam como premissa a ideia de encenação, mencionada no começo do texto. A ideia inicial é que Os Oito Odiados se aproxima claramente de Cães de Aluguel, mas a realidade é que a noção de personagens-que-encenam, como tarefa primária, está presente em praticamente toda sua obra.
Em Cães de Aluguel, Tim Roth é um policial infiltrado que precisa aprender pequenos detalhes para fazer sua história ser crível. Em Pulp Fiction, Samuel L. Jackson e John Travolta discutem no carro qual papel cada um fará para “conversar” com os jovens no apartamento; assim como Tim Roth e Amanda Plummer discutindo como atuarão no assalto à cafeteria. Em Bastardos Inglórios os soldados americanos fingem ser italianos (numa das cenas mais engraçadas de todos os tempos) para enganar os nazistas. E os soldados nazistas fingem ser atores em seus filmes de guerra.
Se em todos esses filmes tratava-se de um pequeno detalhe adicionado à narrativa, a própria narrativa de Os Oito Odiados parte do princípio de que tudo que assistimos é uma cena, mas também pode ser a cena dentro da cena. O ponto é que o clichê metalinguístico não segue a cartilha com Tarantino.
Esse processo se dá especialmente através de um dos seus principais métodos. A todo momento, existe alguém contando histórias e, às vezes, Tarantino vai dissertar mais assertivamente sobre isso: um cowboy discreto está à mesa escrevendo algo. Kurt Russel chega perto e pergunta o que ele faz ali. O cowboy responde que está escrevendo a história da sua vida. “Estou nela?”, pergunta o carrasco interpretado por Russel. “Acabou de entrar”, responde o cowboy.
A história está acontecendo e sendo improvisada.
Cada personagem reflete uma realidade sobre este roteiro: trazer sua história à frente – ou não -, em Os Oito Odiados, sempre é uma escolha intencional. O ponto essencial, contudo, é a própria dúvida sobre a verdade de cada história. Este misterioso cowboy está mesmo escrevendo sua história? O inglês pomposo é mesmo quem diz ser? O ex-militar negro conta a verdade sobre quantos homens já matou?
Toda palavra dita em Os Oito Odiados é um questionamento possível. Nada é verdade, tudo é verdade.
Hitler morreu queimado em um cinema francês? No mundo de Tarantino, sim.
“A verdade, para Tarantino, pode ser questionada, reinventada, explodida com litros de sangue e humor negro extremo. Numa terra de símbolos vazios, o que a verdade realmente é?”
Para Tarantino, a verdade não importa. Mas a “mentira” (ou a boa estória) está nos pequenos detalhes. “The devil is in the details” (o diabo está nos detalhes) canta o duo Over The Rhine, no ditado que parece explicar a essência de Os Oito Odiados.
Um personagem que conta meticulosamente os detalhes de como matou outro está, na verdade, dando o toque elegante de verossimilhança à sua mentira; um personagem toca uma canção natalina ao piano enquanto isso acontece – a serviço da narrativa, do seu próprio álibi, a serviço do processo metalinguístico refinado de Tarantino (o filme se passa no Natal, estreou no dia de Natal nos EUA e teve no seu marketing a frase “passe as festas de fim de ano com quem você odeia”).
Um único elemento do filme resume todo esse processo. Sem revelar muito para não estragar a experiência de quem lê este review sem ter visto o filme (e acredita nele), vamos chamar esse elemento de mais uma encenação. Alguém apresenta esta história como verdade, faz dela algo grandioso. Um símbolo riquíssimo na história americana. Quando revelada como mentira, alguém menciona toda aquela encenação e comenta que um pequeno toque na narrativa fez a diferença para que ela pareça verdade.
Não há mocinhos no cinema de Tarantino e já sabemos disso há bastante tempo. Por isso não conseguimos sair da sessão com a imagem clara de quem são, exatamente, os tais “oito odiáveis” (a tradução do nome do filme errou no detalhe). Todos são culpados neste microcosmo de julgamento (o armarinho da Minnie), todos contam mentiras e encenam suas histórias. Entretanto, nenhum é mais culpado que o diretor.
Tarantino é o mentiroso mais odiável do cinema.