O discreto primeiro episódio de True Detective é a delimitação do seu território narrativo e conceitual. Da visão de uma câmera amadora usada para registrar um interrogatório, somos inicialmente apresentados a Rustin Cohle e Martin Hart e, a partir de suas lembranças saberemos o que Nic Pizzolatto, criador e roteirista da série, deseja contar. É nesse roteiro quase que totalmente limitado às visões pessoais dos dois detetives que conhecemos a história de um serial killer imerso numa Louisiana pintada por religiosidade pentecostal e rituais obscuros, típicos da região. A câmera amadora, entretanto, é de fato da entrevista feita por outros dois detetives que investigam o passado dos nossos protagonistas.
“Duas cosmovisões em conflito na série: o tom existencialista de Cohle e certa hipocrisia cristã de Marty”
Por último, a delimitação do ambiente. Takes aéreos mostram imensos campos abertos do estado de Louisiana, cercados por regiões alagadas, sempre remetendo aos furações que costumam assolar a região. Os descampados, entretanto, logo são cortados pelos pequenos condados e cidades hiper-interioranas, sempre formadas por uma escola, uma igreja, um cemitério, uma floresta. É neste universo que nossa história se inicia, com a dupla de detetives sendo apresentada à morte de uma jovem prostituta, encontrada com elementos que indicam possíveis rituais ocultistas. Sem pistas do assassino, os misteriosos elementos junto ao corpo e todo o caminho da investigação mexe com duas cosmovisões em conflito: o tom existencialista de Cohle e a certa hipocrisia cristã de Marty.
Razão crítica, fé em crise
Esta fé que está presente na narrativa como personagem e através deles não é nada suave ou bela. Não é como esperança que Pizzolatto nos traz essa ética em True Detective. Além da falsa moral de Marty, da sua postura de defesa da tradição de Louisiana, também surge no roteiro a crise das caravanas evangelísticas americanas, presentes há séculos em sua cultura. Com inúmeras variações doutrinárias e sincretismos ocultos, o evangelicalismo é trazido bem mais como problema do que solução. Cohle, mais especificamente, critica sem pena a ignorância dos membros de uma igreja-tenda que eles visitam no terceiro episódio.
“Se a única coisa que mantém uma pessoa decente é a expectativa de uma recompensa divina, essa pessoa é um pedaço de merda” Rustin Cohle
Não adianta imaginar que toda essa radiografia que a série faz dos nossos personagens e da sociedade é mera contextualização – como também pode parecer sobre este texto. Ainda que True Detective possa traçar os caminhos de crimes de tom religioso em um universo de 17 anos, sua narrativa é sobre a transformação de Cohle e Marty. E é justamente aqui onde a série acerta como poucas. Ao contrário da comum construção episódica (de unidades individuais) e baseada na óbvia serialidade e atração a partir de reviravoltas sempre permeadas por histórias mais curtas, True Detective discute pedofilia, fundamentalismo cristão, ocultismo e assassinatos como a melhor ponte para teorizar sobre aquela humanidade de Louisiana – aqui representada pelos protagonistas. Racionalidade e fé estão ali, em um constante conflito que nunca é apresentado de maneira óbvia ou hipócrita, sem entregar uma narrativa rasteira ou manipuladora.
“Cohle não para enquanto não tirar suas dúvidas; Marty deseja deixar para trás as dúvidas e engolir a primeira versão dos fatos”
Nossos detetives vivem uma jornada em True Dective de aprendizado nos 8 episódios e seus 17 anos de história. Um infográfico de um excelente fan site nos mostra a linha do tempo sem as elipses e flashbacks da narrativa, mas nela há apenas os índices de enredo para as transformações da dupla. As mudanças vividas não cabem na tabela de Excel do fã transmidiático.
É evidente que a transformação mais certeira acontece no episódio final. Sem trazer informações que comprometam a sua experiência de espectador, é preciso dizer que nosso storyteller Nic Pizzolatto surpreende à medida em que nos entrega uma transformação ampla nos discursos dos nossos protagonistas. Atordoados pela realidade e amplitude de suas descobertas enquanto detetives, Cohle e Marty se redescobrem. Sem ignorar as cicatrizes que ficaram ao longo dos 17 anos desta jornada, os detetives se entendem como cúmplices – não de crimes, mas da beleza de se transformar por completo. A câmera amadora dos investigadores (sempre perguntando “você pode me falar um pouco mais sobre ele?”) jamais captará este processo.
True Detective
Exibida na HBO
[rating=5]
Ricardo Oliveira é jornalista, mestre em comunicação, nerd, blogueiro no Diversitá e megalomaníaco por produção de conteúdo. Faz parte dos projetos musicais Mais Que Apenas Som e Message in a Bottle, tenta filmar seu primeiro curta de ficção e nas “horas vagas” edita o *catavento.