Disponível no serviço Amazon Prime, Pass Over (2018) é um espetáculo teatral filmado, com direção de cena e de filme assinada por Spike Lee (Do The Right Thing, BlacKkKlansman) e texto de Antoinette Nwandu. O texto é inspirado no molde que gerou Esparando Godot (1949), de Samuel Becket, em que dois personagens discutem aqui uma terra prometida (no texto de Becket, é a chegada de Godot). A expectativa para Kitch e Moses (o nome é proposital à referência bíblica) é sair da vida na Rua Dr. Martin Luther King Jr. O texto discute com precisão a violência policial, as possibilidades da vida fora da pobreza e as relações com “o homem branco”.
Sou um entusiasta de registros fílmicos das artes cênicas. Acho que nossos streamings seriam muito mais ricos se fizéssemos isso com mais frequência, já que inúmeros espetáculos consagrados seriam conhecidos do grande público sem depender de custosas adaptações para o cinema. O preciosismo contra o registro cinematográfico do espetáculo é compreensível, pensando na canibalização do meio. Quando olhamos na perspectiva de hoje, entretanto, ela se faz mais necessário – já que passaremos um bom tempo sem poder ir ao teatro “à moda antiga”.
É bom ficar claro que Pass Over, em geral, é mais eficiente nas discussões que propõe do que na forma em si, mas isso não chega a ser um problema para o todo. Não demora a entendermos a que se propõe e a importância vital do que discute, especialmente na presença da misteriosa figura que aparece no clímax da primeira parte do espetáculo. A alegoria da figura de Moses (Moisés) vai se revelando pouco a pouco até que se desenvolve ainda melhor no terço final, quando atinge um ar épico.
Spike Lee, sempre mais conhecido por seu conteúdo do que pela forma, decide investir em câmeras “impossíveis” para o registro cênico, colocando um olhar subjetivo de cima do palco, muito próximo aos atores, em takes que seriam impensáveis por pura consideração à plateia. Isso geralmente acontece em processos em que se filma o espetáculo em dias diferentes: um dia com e outro sem a plateia para aproveitar o melhor de cada dia. E é por conta desse experimento que o final parece mais truncado em seu discurso, que termina mais fatalista do que o esperado. Não compromete, entretanto, a mensagem importante do espetáculo, sobre igualdade, sonhos e demanda urgente pela construção de uma sociedade mais justa – como 2020 continua nos mostrando ser mais importante do que nunca.
Update: neste domingo (31), quando tivemos o pico de protestos em toda América contra o racismo e por conta da morte de George Floyd, o cineasta Spike Lee publicou vídeo no Twitter em que edita imagens do seu Do The Right Thing com o caso de Floyd e Eric Garner. O vídeo contém imagens explícitas de violência, ficando aqui nosso alerta.