Entre porões, labirintos e prisoneiros: a fé cristã no filme “Os Suspeitos”

Nota do autor: o texto a seguir é uma análise da narrativa e estética do filme “Os Suspeitos”, buscando ao máximo permitir uma leitura prévia sem detrimento da experiência de assisti-lo. O artigo será melhor saboreado, entretanto, se o filme tiver sido assistido. Assista ao trailer.

[dropcap1]S[/dropcap1]e rememorada pelo espectador ao final do filme, a primeira cena de Os Suspeitos diz muito sobre a jornada do marceneiro Keller Dover. Na neve, vemos um cervo passando e a oração do Pai Nosso sendo verbalizada. Uma arma aponta para o animal, enquanto a voz segue em religiosidade compenetrada. Ao fim dela, no travelling para trás que a câmera executa, descobrimos dois homens vestidos de laranja, em caça. O tiro certeiro é disparado e agora percebemos que a voz da oração era de um pai ensinando o filho a caçar. O mesmo Pai Nosso não será terminado posteriormente, pelo mesmo Keller.

[quote_right]”A lanterna do detetive Loki investiga o ambiente como quem também ilumina o vale de escuridão da vida do ministro católico”[/quote_right]

A caminho de casa, após a caça, Keller pergunta ao filho se ele sabe qual foi a coisa mais importante que aprendeu com seu avô. “Esteja preparado” – tempestades e furacões fazem tudo desabar, incluindo as pessoas e suas atitudes. Na rádio, toca “Put Your Hand In The Hand”, canção gospel dos anos 70 que fala sobre confiança em um Cristo que acalmou mares revoltos.

Os Suspeitos (2013), dirigido por Denis Villeneuve (Incêndios, 2010) e escrito pelo estreante Aaron Guzikowski, conta a história de duas famílias que tem suas filhas sequestradas no dia de ação de graças. Keller Dover (Hugh Jackman) é o nosso protagonista – um dos pais. Jake Gyllenhaal é o detetive Loki, responsável logo de início pela captura do suspeito Alex Jones, interpretado por Paul Dano. O título original, mais simbólico e completo quando pensado no arco narrativo, é “Prisoneiros”.

Jones é detido como um jovem errante e de capacidade mental nula. Sem provas para prende-lo de fato, Loki tem de deixa-lo ir. Em forte ímpeto de justiça, Dover decide assumir os riscos de manter Alex em cativeiro para tentar arrancar dele o paradeiro das desaparecidas Anna (filha de Keller) e Joy, filha do seu casal de amigos.

Assim, desconstrói-se um filme-de-sequestro e inicia-se a narrativa de duas jornadas pessoais sobre porões e pecados. Conhecido por ter resolvido todos os seus casos, o detetive Loki se vê em um labirinto de pistas falsas e figuras estranhas; já Keller, apresentado como um homem de fé cristã, vive sob o princípio de que em todo tempo se deve “orar pelo melhor e estar preparado para o pior”. Ambos passarão por cenas idênticas propostas pelo roteiro, marcos específicos da narrativa que nos permitem pensar melhor sobre a espiritualidade no filme.

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À certa altura da investigação de Loki, ele desce até um porão escondido em uma igreja e lá encontra imagens de santos católicos abandonados. Na construção da cena, entretanto, o ponto mais importante é a descoberta do detetive sobre o espaço secreto. As outras revelações da sequência apenas reforçam a evidência de que um porão sem luz em uma igreja diz muito sobre o que o filme busca. Descer até este lugar, além da óbvia construção sobre céu e inferno, nos permite pensar sobre os esqueletos no armário do padre investigado por Loki. O sacerdote, encontrado largado no chão de sua casa, caído de bêbado, guarda ali embaixo o que resolveu esconder dos fiéis, da polícia, de Deus. A lanterna de Loki investiga o ambiente como quem também ilumina o vale de escuridão da vida do ministro católico.

Após a liberdade vigiada dada a Alex Jones, Keller Dover decide investiga-lo pessoalmente e, ao mínimo indício de culpa, o sequestra. O rapaz é mantido em cativeiro numa casa abandonada, deixada pela família de Dover. Paredes quebradas, chão sujo, entulhos, poeira, árvores mal cuidadas no jardim. A casa revela a condição atual e futura da alma de seu dono. Dover não a reforma porque dá muito trabalho; é caro. Ele se prepara para o pior com suprimentos e um porão equipado, mas a sobriedade do espírito apresentado durante toda a introdução entrega-se rapidamente à violência em busca de solução.

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Keller prende Jones em um banheiro desta casa e chama seu amigo Franklin (que também teve a filha sequestrada) a participar da investida de tortura. Após uma surra que já deixa marcas no rosto de Jones, no extremo da situação, Keller pede que Franklin segure o prisioneiro de pé. Ele ameaça martelar sua mão, mas não consegue. O suspeito padece tentando descansar e se encosta em Franklin, enquanto Keller demonstra extremo cansaço e frustração. A imagem, em plano-sequência, termina com Jones recostado em Franklin, quase como se fosse um amparo que precisa, sofrendo por algo que ninguém sabe se ele realmente fez.

A situação representa apenas o começo da jornada de luta pessoal de Keller. O desejo é descobrir a todo custo onde está sua filha, mas o marceneiro não analisa a situação racionalmente. Lançado na jornada de justiça com as próprias mãos, Keller não consegue ouvir concentrado mais do que poucos segundos do sermão que toca no carro. “Ele o lembra que tribulações e aflições são o que nós temos que esperar deste mundo”, diz o pregador no rádio.

“Ele o lembra que tribulações e aflições são o que nós temos que esperar deste mundo”,
diz o pregador no rádio.

Keller e Loki estão no mesmo labirinto. Ambos compartilham buracos, porões escuros e formas diferentes de lidar com a mesma busca. Com tiques nos olhos e dedos nervosos teclando no smartphone, Loki é a figura que ainda busca acalmar Keller em seus extremos. Este, por sua vez, entrega-se gradualmente à emoção e se vê sem não mais conseguir continuar o Pai Nosso quando se diz “perdoa as nossas ofensas, como nós perdoamos quem nos tem ofendido”. Keller, entretanto, em toda sua passionalidade violenta não deixa de também representar a figura do pastor que não descansa enquanto não recuperar sua ovelha perdida.

Assim “Os Suspeitos” apresenta elementos visuais e narrativos que possibilitam, além de contato direto com uma espiritualidade bíblica, um passeio indireto que exige maior atenção e cuidado no olhar. Ambos, Keller e Loki, caminham no filme para descobrir que, acima de uma busca por suspeitos, estamos junto a eles em contato com prisioneiros de alma, de luta pessoal com Deus, contra Deus e contra si próprio.

Os Suspeitos

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Trailer