Sinto muito por você. Já fiquei irritado antes — há um bom tempo venho remoendo esse gosto amargo que me sobe pelo esôfago e eu sinto nas laterais da língua. Não, não é refluxo. Tem sido assim desde que vi você apoiar publicamente o atual presidente e candidato à reeleição. Eu sei que você tem seus motivos, mas, veja, eu não estou falando de alguém que votou nele porque achou sinceramente que aquela era uma boa alternativa, sem ter conhecido de fato a história de Jair (ou o que ele já representava na política há tantos anos).
Estou falando de você, que não só votou nele, mas o apoiou, o defendeu, pregou a sua causa. Mais que isso: sinto muito por você que ainda está aí, fazendo a mesma coisa quatro anos depois.
Sinto muito por você que ajudou a estabelecer a popularidade de um homem cuja principal causa é odiar. Já reparou? Jair não ama nada, não luta por nada de verdade. Ele nem usa o verbo amar no dia a dia. Ele é um militar com uma arma imaginária nas mãos. Lutando por ideais imaginários. Porque lutar por Deus, pátria e família é algo imaginado. Ninguém luta por isso num país de 215 milhões de pessoas, com tantas formas diferentes de fé, família e de ser cidadão. Na verdade, ele luta pelo que ele acha que é uma pátria, uma família, um deus. Mas num país desse tamanho, com tantas etnias, variações de poder aquisitivo e até do próprio português, isso é praticamente uma ideia de monarca do século 16 e não de um presidente republicano.
Afinal, todo mundo tem RG e CPF, mas nem todo mundo compartilha dos mesmos direitos que esses documentos promovem. Há quem tenha RG mas não tenha onde morar; há quem tenha carteira de trabalho em casa mas não tenha onde trabalhar, onde comer, ou o que comer. E aí, dia desses, Jair disse que não vê ninguém pedindo pão na padaria no Brasil de 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar. Claro que não vê. Se tão pouca gente vê esses invisíveis pedindo comida, por que alguém sem coração algum iria ver? Ele não vê mesmo. A gente acredita, Jair. Mas estão lá, isso eu sei. Quem vê, sabe.
Mas você vê? Essa é minha dúvida. Sim, se você vê alguém pedindo pão. Não? Mas você mora aqui mesmo e não vê? Sinto muito por você.
Antes eu realmente ficava profundamente irritado. Enquanto escrevo esse texto, ainda me sinto assim. Todo santo dia sigo surpreso em ver, por exemplo, mulheres dando likes em posts de Jair, defendendo o homem nos comentários. Quer dizer, me explica: se você tivesse alguém em seu trabalho que toda semana fizesse um comentário agressivamente machista na frente de todo mundo com sua melhor amiga. Aquela que lancha com você no intervalo para o cafezinho. Ele chega lá e diz “Vai fazer um troca-troca hoje com o chefe? Rá rá rá!”. Na semana seguinte diz pra outra “tenho pena do dono da empresa em ter que contratar mulher, daqui a pouco aparece grávida, aí já viu! Ré Ré Ré!”. Na outra semana entra uma repórter da TV pra fazer uma matéria na empresa e ele fala alto lá de trás, “e aí, veio dar o furo hoje? Ráaaaa!”.
Imagina ele falar isso com sua amiga lá no trabalho. Eu sei que você já teve um colega de trabalho assim, todo mundo teve. Mas as frases são do presidente, não do seu amigo de trabalho. Ele disse isso em público. Jair não só disse como se orgulha de ter dito, então não adianta dizer que é fora de contexto. Ele dá risada. E tem mulher, eu disse mulher, que o defende. De forma sistemática defende a sua moral cristã dizendo que ele é um homem escolhido por Deus para mudar o Brasil.
Então, eu sinto muito. Se você não sabe que ele se comporta dessa forma e o defende, eu não sinto muito por você. Afinal, em parte você está apenas sendo ignorante e tem chance de mudar, ainda que seja difícil.
Mas se você sabe e o defende, eu sinto muito. Porque, afinal, você é como ele.
Eu sei, é difícil ouvir isso. Porque você, numa conversa mais transparente, aberta, sincera, talvez até admita que ele fala demais. Que podia ser mais moderado nos comentários. Mas publicamente você não admite. Na frente de todo mundo, nos posts nas redes sociais, você mantém a postura: defende com unhas e dentes. Xinga, talvez até responda comentários agressivamente.
Então, não me restam dúvidas: se você o defende, conhecendo suas práticas, você é tão lamentável quanto ele. Afinal, você se diz uma pessoa sensata, provavelmente evangélica ou católica. Alguém que vai à missa ou ao culto comer e beber da ceia como um rito sagrado ensinado pelo maior pacificador que esse mundo já viu. Sério, já pensou nisso? Jesus também era outras coisas, mas entre elas, ele era tão pacificador que deixou que o matassem com tortura só pra mostrar que estava certo sobre tudo que tinha dito. Difícil ser assim. Mas você vai lá nesse encontro religioso, levanta as mãos para cantar, fecha os olhinhos para orar, se ajoelha para rogar, dá o dízimo para ajudar, faz tudo isso, olha quanta coisa bonita. Eu sei, eu sei.
Mas no domingo, o pastor convidou Jair para estar no púlpito. É, o presidente mesmo. Aquele que já disse em entrevista que precisava morrer uns 30 mil no Brasil pra o país melhorar, e que também disse que usava dinheiro de auxílio como deputado pra comer mulher. Aquele que já disse que o erro da ditadura foi torturar e não matar, fazendo rotineiramente homenagem a um dos maiores torturadores do regime militar.
O mesmo Jair que não demonstra pesar pela morte de ninguém publicamente desde que foi eleito. Nem por mais de 600 mil que morreram na pandemia. Ele nem precisava estar errado sobre nada na gestão e ainda assim podia FINGIR estar incomodado com as mortes. Por educação, ao menos. “Lamento profundamente as perdas de tantas famílias”. Só isso, mesmo mentindo, já estava bom. Ninguém ia saber que ele estava mentindo ou não. Mas ele não fez.
O mesmo Jair que quando morriam mais de mil por dia, andava de jetski pra mostrar que “estava tudo bem”. Um poço de sensibilidade. Um poço sem água. Mais como uma bacia, mesmo.
Mas tudo bem, é fácil falar de algo que ele não fez e poderia ter feito. O que ele fez? Ah, fez muito.
Zombou de gente sufocando sem ar, sugeriu não tomar vacina, incentivou uso de procedimentos médicos não adequados, realizou aglomerações por conta própria.
Esse Jair no pulpito. No púlpito. Aclamado como esperança, por você.
Mas porque estou relembrando isso para você? Não precisava, porque, afinal, se você o defende, não só sabe disso como concorda com ele. Você deve ter feito o mesmo, se brincar na saída da igreja. No culto lotado, escondido e sem máscara, porque ninguém podia tirar sua liberdade, né?
Então, eu sinto muito por você.
Porque, no fim do dia, você é pior que Jair.
É sério, eu sei que dói. Eu mesmo estaria triste ouvindo algo assim. Mas pense comigo: ele poderia ser, hoje, só uma tentativa de político. Poderia ser a tentativa de alguém famoso. Um cara sem crédito falando coisas horríveis, fazendo comentários maldosos e executando atos suspeitos dos mais diversos. Mas não, ele não é um louco dançando sozinho na rua. Tem alguém batendo pandeiro pra ele dançar. Alguém dizendo “é isso aí! Dança mais! Fala mais! Fala a verdade mesmo, vamos deixar de mimimi!”.
Esse alguém é você.
Logo, você é pior que ele porque poderia não ser um seguidor ou seguidora fiel, mas é, com seu apoio e incentivo irrestrito. Você o observou de longe, chegando cada vez mais perto e não se distanciou. Ouviu de perto o que ele tinha a dizer e não o questionou. Prestou atenção ao que ele disse e o aplaudiu. Acreditou que o que ele propõe ao país é importante e o divulgou. Quando alguém questionou o que ele disse, você o defendeu.
Assim, preciso explicar para você que hoje, na verdade, eu tenho paz. Antes eu sentia profunda raiva, uma frustração sem tamanho. Hoje, não mais. Hoje eu apenas sinto muito por você, que é pior que Jair Messias Bolsonaro.
PS.: Imagino que se você recebeu esse texto de um amigo ou mesmo se é amigo ou amiga do autor, é possível e aceitável que esteja triste. Talvez você sinta que uma amizade esteja acabando, e é até possível mesmo. Mas deixa eu te falar: se você está lendo esse texto até aqui, e se incomodou com a ideia de que por apoiar Jair Bolsonaro você pode ser pior que ele, isso é um bom sinal. Tem esperança pra você. E eu não estou falando de votar em nenhum outro candidato. De verdade, eu não espero que se você está tão insatisfeito com “tudo que está aí” você escolha uma das outras opções. Tudo bem. Não escolha nenhuma delas, mas também não escolha Jair.
PS. 2: imagino que também, durante a leitura do texto, você sentiu um constante furor de comparar várias das coisas ditas com o principal adversário político de Jair, o ex-presidente Lula. E você tem todo direito, afinal, Lula também pode ser uma figura problemática em vários aspectos. Mas imagina assim: se Lula não existisse e Jair fosse a mesma pessoa, você iria continuar o apoiando? Porque se a sua resposta é sim, a tese do texto continua válida. Se a sua resposta é não, então seu apoio a ele é uma necessidade de oposição política que poderia ser resolvida de outra forma. Várias outras formas, por sinal.