Você não nascerá no país que sonhei

Quando você nascer, daqui a menos de 45 dias, este não será o país que sonhei para você. É o país errado. Deu muito errado.

Os planos não eram para outro lugar geográfico, entretanto. Sonhei com outro espírito, com alguma paz.

Ainda estávamos em meio a uma pandemia quando decidimos por você. E a notícia dessa vinda era uma adição à esperança que pairava no segundo semestre de 2020 – de que poderíamos estar melhores hoje. Que você talvez nascesse em um país de gente que já não precisa mais usar máscaras quando sai de casa.

Não estamos.

É lancitante escrever que você nascerá em um país ainda tomado por uma tragédia evitável.

E assim como uma vastidão de coisas que aconteceram antes que eu ou sua mãe nascêssemos, levados por escapismo ou ignorância vamos tentar esquecer e fingir que tudo que transcorreu durante os últimos 18 meses não é memorável.

Ninguém guarda memórias ruins por prazer. Mas não se nega que nossa vida também é constituída de memórias amargas. A habilidade de projetar desejos futuros, entretanto, tem mais a ver com tentar se enxergar com os olhos que estarão prontos só mais adiante – e não só com os de hoje.

Espero que não fique confuso: nunca negue seu passado e, se preciso, não hesite em revisita-lo. Não desconsidere, entretanto, que você tem um futuro que pode ser diferente.

Mesmo no extremo, diante da morte de alguém querido, o doloroso processo de aprendizado é esse movimento adiante, remando contra a maré que insiste em nos levar de volta à praia do luto – quando, na verdade, tudo o que mais importa é o próximo porto. Esse lugar onde o amor persiste, mas o temporal já findou.

Muita gente perdeu pessoas amadas nesse tempo em que você se preservou alheio a tudo isso. Para minha geração, tanta gente morrer assim, de uma vez, era letra de páginas da época de estados de exceção, de guerras globais. Dos tempos em que sobrenomes deixaram de ser pessoas e se tornaram apenas placas e memoriais.

Assolados por um vírus evidentemente cruel por onde chega, vivemos tempos terríveis. Eu não posso esconder, nem nunca vou, que esse é o mundo em que você vai ter nascido.

“Para minha geração, tanta gente morrer assim, de uma vez, era letra de páginas da época de estados de exceção, de guerras globais. Dos tempos em que sobrenomes deixaram de ser pessoas e se tornaram apenas placas e memoriais.”

Não escrevo por acreditar que diante de tudo isso você poderá ser algum tipo de herói. Não vou te criar como paladino nenhum, mas não vou negar esforços para que o seu coração seja guiado por justiça. Para que você cresça alguém melhor do que eu fui, melhor do que tudo que inadvertidamente nos toma enquanto gente.

Diante de todo choro pungente, não aceite como verdade se alguém te disser que homem não chora. Até mesmo se esse alguém for eu mesmo. Nossa fragilidade é inevitável e, sendo compreendida, é algo fundamental. Ela é a base para a vida distante da insensibilidade, da apatia, da indiferença. Entender quão vulneráveis somos diante da grandeza da vida, da beleza divina, é compreender nosso lugar em um mundo que, coletivamente, geralmente decepciona mais do que alegra.

Nosso fino tecido de proteção diante da vida, quando consciente, enrijece nossa coragem: nunca tenha medo de se expor quebradiço, magoável, suscetível. Isso é verdadeiramente ser forte.

Ninguém é virtuoso nesse mundo apenas porque diz que é, mas unicamente porque assim dizem sobre você.

Nunca se auto elogie, mas não tenha receio algum de deixar muito claro quem você acredita ser. Nunca diga “mais do que ninguém, eu…” se for para se congratular ou se depreciar na sequência.

Foto de Tommaso Pecchioli

Nunca deixe que seu coração congele e escureça seus olhos para cada invisível que passa por você pedindo ajuda. Mesmo que não possa fazer nada naquele instante, não esqueça o rosto, o lugar, o pedido. Separe ou compre, volte lá, olhe no olho e tenha a coragem de compartilhar gratidão, ajudando sem receio. Nunca dê por dar, nunca dê “uns trocados”, nunca esqueça que o coração compassivo é aquele que serve primeiro, antes de ser servido. Faça mais.

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Quando você nascer, ainda não temos todas as respostas para como vamos conseguir cuidar de você. A única por agora, é que não estamos sozinhos e somos imensamente privilegiados. Sua mãe é uma pessoa inimaginável que, com muitas lágrimas, lutou para que chegasse o seu tempo conosco. Mesmo depois de tanto que passamos, nunca tivemos dúvidas que você está vindo no momento certo. Por mais imaturo que eu possa me considerar para tudo isso, sigo tendo certeza que hoje estou menos imaturo que ontem.

Todos os dias podemos ter um coração novo.

Um olhar que se transforma 1% diante dos erros de ontem, já é uma visão menos inexperiente para o novo de cada dia. Ainda que erre mais vezes, a consciência do erro não o permite olhar para a mesma coisa, da mesma forma, nunca mais.

Mas se você me pergunta por que seguimos fatalmente errando como povo, hoje eu tenho apenas um sinal. É urgente recuperar a capacidade de perguntar “por quê?”.

Ninguém está de fato tomado por atenção e consciência se se diz atento a um assunto ou ciente de suas atitudes mas não entende o porquê delas. Sem saber a razão das coisas – se de fato entendemos o porquê de decidir por X ou Y – progredimos para atitudes que se amontoam e ao fim nos derrubam sem pena.

Não é leve, porém, a alma de quem decide que a vida irreflexiva não vale a pena. Mas não há outro caminho em oposição à insensatez. Longe disso, nos tornamos meros espectadores de uma vida vazia, consumista, apática ou insipiente.

O homem insensato é capaz de se maquiar em enormes gestos cheios de ideologia, religião, sonhos, manifestos e causas supostamente nobres. É excruciante escrever que no ano em que você nascerá, seu país é governado por homens e mulheres que transbordam despropósito em uma piscina pintada de verde e amarelo. Em nome de um patriotismo vil e falido, estão dispostos a mais do que ignorar os porquês, mas até a zombar deles.

O país em que você nascerá é uma república surda à sabedoria. De ouvidos tampados, de olhos fechados, somos uma nação que berra atrocidades ao vento.

Já me foi mais doloroso e espero que, em sua maturidade, isso já nem seja mais um assunto: até caridosas comunidades de fé abraçaram essa gritaria de tolices. Convictas sobre tantas profecias, encantadas com as oportunidades de beijar bezerros de ouro, abriram mão de muito do que construíram ao longo de décadas. Uniram-se em prol de uma suposta moral e, assim como já vimos antes no mundo, não nos surpreende que na verdade tudo se trata de um mal descarado e repleto de desesperos alheios ao deus a quem afirmam adorar. Essa igreja esqueceu de perguntar por quê. Talvez há mais tempo do que fomos capazes de notar.

“É excruciante escrever que no ano em que você nascerá, seu país é governado por homens e mulheres que transbordam despropósito em uma piscina pintada de verde e amarelo”

***

Você não nascerá no país que sonhamos, mas não vamos desistir. Não agora diante de tudo que conquistamos para que você pudesse simplesmente nascer. Cada dia foi e segue sendo o cansativo duelo com a sombra da alma ou contra inúmeras penumbras que indefinidamente nos amedrontaram diante da simples ansiedade de ter um filho.

Você entenderá melhor do que nós as premissas para uma maior destreza diante do sofrimento da alma. Não tenha medo de cuidar dela, nunca deixe para depois. Retardar o cuidar de si é sempre a pior das escolhas. Conhecer-se é, enfim, nunca parar de perguntar por quê.

Chegamos até aqui e, novamente, não desistiremos. E você, como vier, quando vier, já tem por certo que o amor que nos uniu também o fará seguir em frente.

Você não nascerá no país que sonhamos, mas vai crescer ciente de que pode sonhar e construir um novo.

Com esperança, sempre.

Seu pai.