Noite inconstante. Pele dormente. Desperto inquieta em busca do fôlego a recuperar. Ainda no escuro, abro uma brecha em minha janela, e com olhos desfocados procuro por um raio de sol que espante o dia que findou. Só encontro escuridão. Não há mais sono, mas ainda há noite.

Com vento frio no rosto e brilho estrelado na íris, contemplo a imensidão do Teu Céu.
Até mesmo a madrugada mais infinita não se torna vazia quando sei que estás aqui.
Busco expressões de gratidão. Ensaio uma oração. Balbucio. Vacilo. Desisto.

Faltam palavras que possam competir com o espetáculo do cenário que fizestes pro nosso encontro e as frases bailam fugitivas em meus pensamentos, como se soubessem de sua injusta insuficiência. Me calo e Te ouço. E não há outro lugar onde eu deseje estar senão ali, diante de Teus braços aconchegantes, derramada sob Teus pés vivos e sagrados, sentindo Teu rio percorrer minhas veias e fazendo cachoeiras de água viva jorrarem pelos meus olhos.

Aprecio o recomeço. A chance de ser novo.

Tua presença desfaz minhas noites, e meus olhos Te contemplam enquanto a luz que brilha dentro de mim reconhece as pinceladas de cor no horizonte. Aprecio o recomeço. A chance de ser novo. As misericórdias renovadas. O dia que chega, enquanto a velha noite finda.

Aos poucos, um galo entoa a regência da orquestra matinal, o orvalho brilha no jardim, o vento sorri com frescor e os primeiros raios de sol se anunciam limpando o céu dos tons pesados e tristes.

Canto meu adeus à estrela da manhã, aquela que insiste em se demorar para apreciar o balé do amanhecer. Por fim, preguiçosa, ela se despede cordialmente com um último brilho fulguroso enquanto se junta as suas companheiras esmaecidas. Certamente elas fogem ao teu encontro para roubar-te um pouco de brilho.

Manchas brancas de algodão se dissipam em desenhos multiformes, pintando sonhos tranquilos em meio ao azul majestoso refletido em meus olhos. É fácil Te ouvir nos segundos de calmaria que antecedem o despertar do mundo, enquanto pássaros barítonos anunciam a cada recanto um bom dia esperançoso.

É fácil Te ouvir nos segundos de calmaria

Enfim, coreografadas pelo espetáculo assistido, minhas palavras bailantes se enfileiram conscientes de que sempre serão pequenas e se contentando com a prece desejada para todas as manhãs:

“Que o tempo que corre, a rotina que espera, a ansiedade autosuficiente, o pecado que enraíza, e o barulho que dispersa não abafem a lembrança da melodia entoada nos resquícios das matas, nas sombras dos parques, pelos fios dos postes ou pousadas em uma janela. Que esse canto do resgate que há no amanhecer ressoe dentro de mim. Todos os dias, incansavelmente, das trevas para a luz. E que o relógio não defina o silêncio que Te encontra. Amém.”


Capa: morning solitude.

jully anneJully Anne é arquiteta por vocação, se expressa por desenhos no ofício e brinca com palavras nas horas vagas.

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