Acordei cedo, olhei para minha janela e o céu nublado se transformava numa bandeja de prata que intensificava o brilho do sol no meu rosto; hora de levantar. Dirigi-me até o banheiro, abri o chuveiro e tomei um banho com a finalidade mais de acordar que propriamente limpeza. Banho morno para amolecer a pele do rosto e prepará-la para uma boa conversa com a lâmina de barbear.
Ducha desligada, vapor pairando e espuma à postos: o cenário está montado. Passo a mão no espelho embaçado para enxergar melhor e traço uma meia lua no vidro, a imagem que fica é de uma pessoa embaçada e apenas um bigode nítido e claro destacado na área que acabei de limpar.
Sem rosto, ainda consigo me enxergar na fresta de nitidez do aço cromado. Sinto um pouco de orgulho por saber que carrego comigo um traço tão característico, que vai muito além de uma opção de estilo, que possui toda uma profundidade sem fim no escuro de seus fios. Escuro como o terno que meu avô usa até hoje na foto de seu casamento que descansada pendurada na parede de seu local preferido. Um preto que não é sinônimo de fim, mas de infinito, o riso da foto que é uma versão limitada do riso dos dois.
Olho um pouco mais e vejo que além de traços pretos há castanhos, vários deles. Nessa dança bicrômica eles se unem e formam um apanhado de pelos que compõem uma paleta clara em meu rosto, morena.
A percepção logo me faz cantarolar: “Eu quis fazer um poema / Falando da cor morena / Mas como se tu és loura demais?! / Falar de olhos castanhos / Não tenho, já não posso falar / Por que tens os olhos da cor do mar!”. Composição do meu avô, para minha avó, que todo dia às 17h sem falta, depois de arrumar os 7 filhos, botava a melhor roupa e perfume e esperava o marido retornar do trabalho.
Prossigo nesse meu processo de contemplação e percebo que alguns fios destoam da espessura e saem finos e delicados, repousando suavemente sobre outros mais grossos e firmes que dão sustentação para aqueles.
Finos também eram os braços de minha avó, durante boa parte de minha infância, quando ela já sofria as agruras do Alzheimer.
Pego um pente e de imediato desisto da ideia. O bigode já está naturalmente alinhado e parece crescer de maneira uniforme e ordenada. Os do canto da boca naturalmente arqueiam-se para dar formato, o superiores crescem mais devagar para manter a essência e os de baixo prosseguem retos e dão volume, nenhum parece desalinhar.
De repente, lembro da hora e de como não posso atrasar. No primeiro domingo de dezembro meu avô faz o “Natal da Granja”, onde filhos, netos e agregados trabalham em favor das famílias locais. Ceia farta, uma celebração cristã e sorteio de cestas básicas e presentes para aqueles que possuem menos que a gente. É o que meu avô faz no Natal; quer dizer, fazia.
Meu avô se foi no ano de 2002, meses após minha avó falecer – ela era a razão de ele estar vivo, “Minha musa se foi.” – ele disse na ocasião. Mas os filhos deles continuam o Natal, uns arqueiam as mesas para dar formato, os mais velhos preparam a festa e mantém a essência e os demais prosseguem na tradição e dão volume…e nenhum parece desalinhar.
Meu avô usava bigode e os filhos todos também usam. Guardo a espuma e a lâmina, já vim com o melhor presente de Natal, um bigode com mais história que eu.
Foto: Moustache Gift Tag.